Meritocracia é um imperativo ideológico que oculta contradições sociais nefastas

Você já se perguntou o que é vencer na vida? Se perguntou o que aconteceu na trajetória de alguém que você considera que tenha vencido na vida? Já parou para pensar que esse discurso está diretamente ligado à meritocracia e ao heroísmo? Na última quarta-feira, dia 20, a advogada Laura Astrolabio, lançou o livro “Vencer na vida como ideologia: meritocracia, heroísmo e políticas afirmativas”.

No evento, no Rio de Janeiro, ela trouxe como exemplo uma pessoa que pega trem, trabalha e estuda cruzando a cidade. Essa pessoa pode chegar nesse lugar que se considera “vencer na vida”, mas seu caminho vai ser muito mais penoso do que o de alguém que tem suporte financeiro familiar e mora ao lado da faculdade, por exemplo. E quando ela “vence”, é vista como herói que conseguiu vencer as adversidades.

Ao assumirmos esse posicionamento, normalizamos uma série de desigualdades, faltas de oportunidades e facilidades que não temos. É assim que a meritocracia é alimentada. Como define Márcia Tiburi na contra-capa do livro: “a meritocracia é um imperativo ideológico que oculta contradições sociais nefastas”. É preciso estar atento para não cair em um discuso falacioso. Fiz duas perguntas para a Laura sobre o tema. Confira:

Por que você decidiu transformar a discussão da meritocracia, heroísmo e vencer na vida em livro? Você usou sua experiência pessoal como inspiração?

Por que é sofrível perceber o quanto usam o conceito de meritocracia para justificar o “fracasso” da maioria de uma população que é pobre, sem acesso a recurso material, concorrendo em desigualdade de condições. A meritocracia num país desigual como o Brasil é um mito. E para afirmar isso é preciso explicar o que é meritocracia, para então demonstrar as incongruências de afirmar que “se a pessoa não conseguiu vencer na vida foi porque não se esforçou o suficiente”.  Eu tento mostrar que aqueles que “venceram na vida” no Brasil não venceram por mérito, mas porque ou carregam privilégios, ou são “heróis”. O termo “vencer na vida” é uma ideologia. Grupos sociais na nossa sociedade se apegam a esse termo para justificar que “venceram” por mérito, por isso não têm responsabilidade alguma com o fato dos outros não terem conseguido. Por outro lado, aqueles que não “venceram”, são convencidos de que são fracassados, que não se esforçaram o suficiente, por isso acabam ficando resignados com a condição em que vivem.

Por vezes ocupamos espaços extremamente embranquecidos e estar neles é visto como “vencer na vida”. Como você enxerga isso? É preciso mesmo ocupar todos os lugares?

Pessoas que fazem parte de grupos historicamente excluídos, quando conseguem ascender socialmente, por heroísmo, e se tornam ponto fora da curva, acabam se percebendo como únicos nos lugares que passam a ocupar após a ascensão social. E como no Brasil a classe tem cor, e pessoas negras, em regra, são de origem pobre, quando chegam nesses espaços são lidas como aquelas que “venceram na vida” e logo aparece alguém para dizer “olha lá ela/ele! Também é de origem pobre como você, mas se esforçou e venceu na vida. Você não venceu porque não se esforçou”.

Sobre ser preciso mesmo ocupar todos os lugares, eu acredito que depende do que exatamente estamos falando. Por exemplo, a divisão sexual e racial do trabalho coloca mulheres e pessoas negras como aquelas que devem estar ocupando apenas certos cargos em certos lugares e isso precisa acabar. A estrutura racista e machista impõe essa divisão. Então, o que precisamos perguntar, por exemplo, é se pessoas negras têm mesmo que estar ocupando cargos de juízes num sistema em que a maioria dos magistrados são homens brancos. E a resposta é sim. Mas para ocupar esses espaços é preciso ter as mesmas oportunidades que homens brancos têm desde o nascimento, porque “só” de não sofrer racismo a vida toda já é um grande privilégio.

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